Entrevista com Benício Campos

Postado em 19 de novembro de 2012

 


 

Como foi parar em Mocuba, província de Zambézia em Moçambique?

 

Benício Campos – Cheguei a Moçambique em outubro de 2007 como missionário. Nos primeiros anos o objetivo era conhecer as pessoas, a cultura, os valores do povo moçambicano. Enquanto aprendia também auxiliava o diretor da missão da Coreia, o senhor Sang Bum Lee, um pastor que estava aqui há muitos anos. Ele conhece e ama profundamente este país. A missão tinha como parte do seu programa, visitar o Norte do país para a implantação de igrejas e encorajamento das que já existiam, logo eu passei a coordenar essas viagens e logo me vi comovido com a situação deles. Depois do meu casamento com a Guida, que está grávida e é moçambicana, fui ordenado a pastor e em seguida recebemos a proposta de viver em Mocuba e como o meu coração já estava aqui, aqui estou.

 

 

 

Qual projeto levou? Por intermédio de quem?

 

Benício – Meu trabalho era de supervisionar as igrejas, dar treinamento aos líderes, realizar os sacramentos em cinco dos dez estados de Moçambique, mas principalmente trabalhar no desenvolvimento da comunidade onde fui instalado, a saber, bairro Samora Machel, Mocuba. Samora Machel é uma aldeia gigantesca com cerca de 60.000 pessoas entre crianças e adultos que sobrevivem de lavouras pessoais e que estão abaixo do nível da pobreza. Fui enviado do Brasil para cá por uma missão coreana chamada Global Partners, mas em Moçambique trabalho diretamente com a Missão da Coreia que desenvolve em Moçambique inúmeros projetos como desenvolvimento integral da criança e da comunidade, escola técnica de agricultura, escolas secundárias, seminários, etc.

 

 

 

Como o povo de Mocuba recebeu você e este projeto?

 

Benício – Moçambique sofreu com a colonização até 1975, isso interfere muito na relação do povo com qualquer estrangeiro ainda hoje. Quando cheguei, eles me viam como “patrão”, me chamavam de branco, na cidade ainda sou um “branco”. Só na aldeia onde trabalho e onde viverei daqui a poucos dias é que tem mudado um pouco essa perspectiva sobre mim. Eu particularmente não gosto de ser visto como um patrão, porque não sou e porque não quero ser visto como alguém acima deles, isso não me ajuda em nada porque dessa forma eu não consigo alcançar corações. Eu desejo ser reconhecido como um servo que veio para lhes ajudar a descobrir o caminho para um futuro.

 

 

 

 

Qual a sua função hoje neste local?

 

Benício – Eu pastoreio uma igreja em Mocuba e participo ativamente na vida da comunidade, carrego caixões, levo grávidas para o hospital, socorro os enfermos, assim é meu dia a dia. Neste ano preparamos documentos de crianças e adolescentes para entrarem na escola, matriculamos e confeccionamos uniformes escolares. Recebemos doações da Coreia de roupas, esteiras térmicas e material escolar. Isso me ajudou a descobrir meu próprio caminho. Tenho vivido mais perto da juventude, aconselhando, dando palestras e procurando mostrar para eles o valor que eles têm. Eu sou cristão, creio que o evangelho de Jesus o Cristo tem poder para transformar pessoas e dar-lhes um sentido para a vida. Vivendo em Mocuba há quase dois anos, percebi que a minha vida só terá sentido se eu falar menos e fizer mais. Por isso, em 2013, meu maior investimento de tempo e recurso será num projeto social que foca toda a comunidade a começar pelas crianças. Não estou sozinho nesse propósito, o Kiko Bispo e o Wesley Penteado, desde que vieram aqui no último janeiro, foram também impactados por essa mesma necessidade de ajudar esse povo lindo e amável. Foi através deles que registramos as crianças, fizemos os uniformes e as colocamos na escola. São eles que “encabeçam” o projeto Mocuba para o furo de um poço artesiano para a comunidade.

 

 

 

Qual a maior carência?

 

Benício – Educação no sentido mais amplo da palavra. Aqui, crianças na oitava série, mal podem escrever o próprio nome. Não há perspectiva alguma para o futuro delas. Isso não é viver, é subsistência precária. A maior dificuldade é despertar dignidade nas meninas. Elas já nascem sabendo o que lhes aguarda. Mal chegam à puberdade e o seu futuro é brutalmente usurpado. Os homens em geral se aproveitam da extrema pobreza e por míseros trocados, defloram as meninas quase todas. Na escola cerca de 70% das meninas já sofreram algum tipo violento de assédio em troca de notas. Elas já crescem sabendo que mais dia, menos dia, estarão ou com SIDA ou com filhos.

 

 

 

Você está com malária pela 13ª vez. Como é isso?

 

Benício – Antes de eu ter malária pela primeira vez, quando encontrava alguém com essa doença eu dava uns tapinhas nas costas e dizia: vai passar? “Briguei com Deus” na primeira vez que me aconteceu, mas logo agradeci por experimentar na própria pele o que o povo moçambicano sofre na realidade. Hoje respeito um doente porque sei exatamente o que ele está sentindo. Pulo de alegria quando vejo uma criança vencendo a malária, não sei como ela pode suportar aquilo, porque todos nós sabemos que a malária mata muitas crianças diariamente em África.

 

 

 

E a falta de água? Como se viram com isso?

 

Benício – Em Moçambique já existe um sistema de abastecimento de água que atua nas principais cidades do país. Esse sistema poderia ter avançado muito, mas como todos nós sabemos, a corrupção está em todos os lugares e quem paga sempre é a maioria, a população. As pessoas de modo geral recorrem aos rios e também aos poços artesianos que são furados, a maioria deles em parceria com o governo. A grande dificuldade que se enfrenta ao furar um poço é o seu preço. Essas empresas cobram muito caro. Em Mocuba, por exemplo, a maior parte das pessoas vai para o rio Licungo ou rio Lugela, mesmo tendo ocorrências de ataque de crocodilos. Não existem outras opções.

 

 

 

O Governo da África do Sul não colabora?

 

Benício – Moçambique recebe muita ajuda externa, o problema que vejo é a falta de redistribuição justa. Um país governado por um único partido é mais propenso a esse tipo de situação.

 

 

 

Existem projetos do Brasil que beneficiam as crianças desta comunidade?

 

Benício – Existem apoios informais, mas o Kiko e Wesley e suas comunidades no Brasil se juntaram conosco para formalizarmos esse projeto de desenvolvimento da comunidade através do desenvolvimento integral das crianças. Temos em Maputo projetos desse tipo que estão sendo feitos em parceria com Korea Food for Hangry International. Teremos encontro com eles já que em janeiro meus amigos estarão novamente aqui. O projeto funciona basicamente com pessoas que adotam financeiramente uma criança e através da gente tem contato com ela e acompanha passo a passo do seu desenvolvimento.

 

 

 

Como funciona o Projeto Moçambique Musical que tem o músico suzanense Kiko Bispo como um dos idealizadores?

 

Benício – O Kiko, como gênio musical que é, veio para cá para conhecer e para contribuir com o seu dom, a música. O que poucos sabem é que o coração dele é imenso e logo que ele chegou, já foi comovido com a nossa realidade. Ele ensinou música para as crianças, ele deu palestras sobre a música na igreja, mas também tirou tudo o que tinha nos bolsos e doou para o projeto “Toda Criança na Escola”. Sem dizer que veio com malas cheias de creme dental, escovas de dente, lápis e canetas. O Projeto Moçambique Musical começou com musicalização infantil, mas agora está se tornando incrivelmente abrangente. Pode se dizer que o Projeto Mocuba é a continuidade do projeto Moçambique Musical.

 

JOGO RÁPIDO

Um lugar – Blyde river canyon (South Africa)

Um filme – Patch adams – o amor é contagioso

Uma música – Canção da América

Um momento – Conversão Deus – Inerente

Família – Plenitude

Uma mulher – Madre Teresa de Calcutá

Um homem – Benjamim (meu pai)

Fotos: Arquivo Pessoal

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